Série Ouro
O circo do Zé Povão é o enredo da Feitiço do Rio
A crítica social e política dará o tom do enredo da Feitiço do Rio para o Carnaval 2021. Recém-filiada à LIVRES, a escola disputará a Série B apresentando O circo do Zé Povão: o picadeiro brasileiro. O tema mostra, sob a lona verde e amarela, o dono do circo apreciando o povo como verdadeiros artistas, se equilibrando nas dificuldades, fazendo mágica para pagar as contas, encarando um leão pronto para devorá-lo …
Sinopse
O circo do Zé Povão: o picadeiro brasileiro
Respeitável público!
O FEITIÇO DO RIO o saúda e pede passagem para apresentar o CIRCO DO ZÉ POVÃO! É monumental! É magnífico! É surreal! “O circo é alegria de viver, o circo é alegria que você precisa conhecer”! A lona verde e amarela já cobre o nosso picadeiro, prestes a receber artistas de todo o país, que, com grande e inesperado talento, vão passar pelas mais loucas peripécias. “Se segurem, pois o show já vai começar!”
Ao longe, do alto do seu camarote, de onde se vê todo o palco, com vista para o mar, o dono do circo ostenta sua poderosa cartola e observa a todos com um olhar ganancioso, que contrasta com a magia do cenário. A fumaça do seu charuto anuncia sua presença, ameaçando a desprotegida trupe. Jeito esnobe de quem é tão pobre por só ter fortuna. Afortunadamente miserável. Mal sabe ele quem são os verdadeiros donos dessa balbúrdia…
A nossa primeira atração parece frágil, mas tem que carregar o peso do mundo nas costas. Não é fácil, nem muito menos leve a vida do levantador de peso que, quanto mais suporta, mais carga aparece. O suor que escorre na testa é de quem sustenta um país e que tem que seguir a sorrir. Desistir não é opção… Segue em frente, dá conta, escapa dos problemas. Viu desde pequeno os exemplos de quem desvia das adversidades como quem foge dos ataques de um atirador de facas. De quem faz da vida um eterno bailar da sobrevivência, escapando do que o mundo insiste em jogar na sua direção.
Todo dia é um sufoco! Tantas contas para pagar… Malabarismo eterno! O público observa as cifras subindo e descendo, rodeando, suspensas no ar, ansioso para saber se o malabarista terá mãos para segurá-las todas ao mesmo tempo.
Para tornar ainda mais difícil o trabalho do habilidoso artista, um enorme leão invade o picadeiro. Voraz, esfomeado, pronto para abocanhar tudo o que vê pela frente. Um pequeno domador, ao lado daquele gigante felino, parece ainda menor. Vida que vale pouco? O pouco que possui está ameaçado! Tem imposto pra pagar, o leão não perdoa! O animal tenta de todos os modos conseguir se alimentar do corpo, da alma, das poucas conquistas que possui aquele pobre homem.
Mas se tem algo que nossa trupe sabe fazer é mágica! O ilusionista já chega no truque: “Abracadabra! Sinsalabin!”. Ele tira mais do que coelhos da cartola e cartas da manga… “Tira da cabeça o que do bolso não dá”! As cobranças se multiplicam, a fera segue ameaçando, mas, como que por encantamento, do salário se faz o máximo, ainda que seja mínimo.
Na coxia, ainda temos todo o tipo de gente, doida para mostrar seu valor. A plateia, faminta por emoção, entrega-se às mais deliciosas ofertas do vendedor. “Olha o algodão doce! O ‘dogão’ caprichado! Na minha mão é mais barato! Tem ‘refri’, água e alegria! A pipoca tá quentinha e tem bala pra adoçar a vida”. Ele vende de tudo um pouco e sustenta a família dando um drible nas dificuldades e um bico no desemprego. Dá um jeitinho, conquista um trocado, mas, mais do que uma carteira recheada, ele queria mesmo era uma carteira assinada. Feliz não tá, mas é o que dá.
Um barulho de motor se sobrepõe à algazarra das crianças. O cheiro de combustível revela o novo ato e um enorme e desafiador globo de metal já toma todo o picadeiro. Dentro dele, envenenadas motos aceleram e se cruzam num perigoso balé, onde qualquer queda pode ser fatal. Por um breve momento, nosso simpático ambulante se distrai das suas vendas e embarca nas lembranças que duas rodas lhe trazem. De um tempo não muito distante, em que enfrentava aquele mesmo trânsito caótico, mão e contramão, entregando-se ao risco para saciar a fome dos outros e também a sua. Nesse globo, a morte pede carona de várias formas, mas a viagem da nossa caravana segue em frente, na veloz estrada da vida.
Os olhares aflitos do público se dirigem para as extraordinárias equilibristas que não dormem em serviço. Manejam varetas e balanceiam pratos, xícaras e objetos da mais fina louça com uma destreza de deixar qualquer um vidrado. Aquela louça serve bem, então, não pode deixar cair. Palmas da madame e do sinhozinho. Nas alturas, fantásticos trapezistas são mestres na construção de “desenhos mágicos”, com “seus olhos embotados de cimento e coragem”. De um lado para outro, fazem piruetas no ar, voando e andando pelos andaimes, sem tropeço.
Sob aplausos, passam a vez para o contorcionista. “Ele se mexe, se inverte, se dobra, se redobra”. Corpo que parece mola. Sem junta que, quando se junta, pode ser milhares onde só cabe um. Quantos desse caberiam num trem lotado? Quantos desse somos num ônibus abarrotado? “Se amassa, se aperta, quase se parte”, para nesse emaranhado chegar ao destino e voltar a ser apenas um ou novamente vários.
A criançada se diverte ao olhar pra cima e ver pernas de pau ganhando espaço pela pista. De cima tudo parece menor e distante. Mas ao mesmo tempo tão belo. Tantos pequeninos como aqueles sonham alto, sonham longe. Longe dali, onde o céu está mais perto, ele é o limite. Querem mais do que as poucas expectativas. Querem mais do que o gosto amargo de quem todo dia engole fogo como se esse fosse seu destino. Cospe nesse destino e floresce, menino!
O amanhã é todo dos nossos saltimbancos! A cartomante anuncia: “o nosso destino será como Deus quiser!”. Tem gente crente de ser aquilo mais um truque, mas não é o ceticismo de alguns que vai abalar a magia dos nossos artistas. “Olho grande na gente não pega, não pega não”! E é com fé que temos certeza da vitória. Nosso elenco se ergue, com fitinhas no pulso, folhas de arruda na orelha e muita esperança no coração.
Uma melodia ressoa pelos ares, mas, para a alegria de todos, o que sai da cesta do encantador não são serpentes, e sim serpentinas! Tambores de todos os ritmos embalam cantorias e sorrisos. Das frestas, o último ato desse espetáculo se transforma então em uma magnífica festa! Brincar é subverter, brincar é resistir. “É show, que euforia”! Nossa trupe não quer mais ser como mímicos, relegados ao silêncio e às vestes desbotadas e apáticas. Solta a voz sem medo. Não mais sussurra… Grita, berra. O picadeiro é seu por direito. É sua casa, é sua alma, é sua essência. A tinta branca em seu rosto ganha cor, tem raça e coragem. A lona se tinge de muitos e tantos tons, num caleidoscópio que traduz nossas alegrias e sonhos. A vida é circo: é andar na corda bamba e escapar do tombo, é cambalhota e acrobacia, é o “beijo moleque” e a gargalhada boba, mas sincera do palhaço. De nariz vermelho e peruca colorida a gente encara e encanta o mundo com a euforia inocente de quem quer ser criança para sempre. Tá certo ou não tá?
Assim vai se encerrando o espetáculo do Circo do Zé Povão: esse universo fascinante do absurdo sem limites. Tem drama e tem comédia. Tem o eterno rondar do perigo da morte, mas também tem o enorme desejo de viver. É aqui que nosso povo “na tristeza dá um laço”, se vira nos trinta, salta do trampolim e enfrenta os problemas todos os dias, com sangue, suor e lágrimas, mas também com alegria, malemolência e irreverência. A gente existe, a gente insiste, a gente resiste! Porque o nosso FEITIÇO é esse: levantar a cabeça, lutar pelo que é certo e fazer sorrir, fazer a nossa festa. “A gente não festeja porque a vida é mole, a turma faz isso porque a vida é dura”. Aqui a gente brinca de fazer Carnaval, mas, nesse circo, não vão nos fazer de palhaços! Hoje tem marmelada? “Não vai ter mais não!”
Texto: Renata Bulcão e Daniel Guimarães
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