Série Ouro
Cubango apresenta sinopse do enredo
A Acadêmicos do Cubango apresentou na noite de quinta-feira, 24 de maio, em sua quadra, a sinopse do enredo Igbá Cubango – a alma das coisas e a arte dos milagres, que a agremiação levará para a Sapucaí no Carnaval 2019. O tema será desenvolvido pelos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora e foi pesquisado pelos dois artistas e por Vinícius Natal.
O enredo aborda os objetos de devoção, com destaque para os ex-votos e para os símbolos cultuados pela própria Acadêmicos do Cubango, que foi pentacampeã, em 1979, pedindo a proteção de um objeto sagrado: o boneco Babalotim, no desfile Afoxé, de autoria de Ney Ferreira.
Gabriel Haddad destacou a aceitação do tema pela verde e branco. “O enredo é um presente que oferecemos à escola, que nos cobrava uma narrativa que falasse dos fundamentos dela. Há uma crença interna de que ‘a Cubango quando fala de macumba, ninguém segura!’. Nós acreditamos nisso e temos a certeza de que virá um grande samba, com a força dessa escola tão apegada às suas origens.”
Salas dos milagres
Leonardo Bora afirmou que tudo é produto de uma teia de conexões. “Durante as pesquisas, descobrimos que as famosas ‘salas dos milagres’, o modo como são chamados os lugares onde os romeiros depositam os ex-votos, têm sua origem na devoção a São Lázaro, que é o padroeiro da Cubango. Para quem não conhece, uma das principais cenas do filme Central do Brasil se passa em uma dessas salas. Recentemente, um dos cenários da ópera A Valquíria, apresentada no Municipal do Rio e dirigida por André Heller-Lopes, era uma sala de ex-votos.”
A ideia, segundo Leonardo Bora, era anterior à chegada do trio à escola de Niterói. “Na arte contemporânea brasileira, este é um tema recorrente. Vinícius Natal, amigo desde a comissão de Carnaval da Mocidade Unida do Santa Marta, já havia sugerido esse tema e nos apresentou ao livro A alma das coisas, que reúne artigos de antropologia dos objetos, com pesquisas sobre os mais diferentes itens, da Calunga Dona Joventina às pedras dos Candomblés. Juntamos isso às pesquisas de Graça Góes e Ana Duarte. A vontade de revisitar O rei da vela era antiga e foi perfeitamente integrada, trazendo a reflexão crítica na medida certa, urgente e necessária. Aos poucos, juntamos todos esses pedaços e vimos o enredo nas mãos.”
Enredo
Igbá Cubango – A alma das coisas e a arte dos milagres
Objetos de poder, objetos de devoção, objetos-dádivas, objetos que possuem alma e contam histórias, objetos de pedir e pagar, objetos que traduzem graças, objetos encantados, objetos-amuletos, objetos-relíquias, objetos que operam milagres – e que mentem milagres também. O GRES Acadêmicos do Cubango pede a proteção de Babalotim, o “ídolo menino” que completa 40 anos, e agradece a São Lázaro, o padroeiro, pelo sonho vivido no último cortejo. Romeiro, cada sambista carrega consigo as suas obrigações. O que pretendemos contar são causos da religiosidade popular brasileira a partir da relação de cada sujeito com os seus objetos de culto. Somos devotos dos tambores ancestrais: rum, rumpi e lé. O desfile é o nosso ex-voto, o samba é a nossa graça. Porém é preciso cuidado com as promessas dos falsos profetas – novíssimos Reis da Vela com as suas coroas de lata, votos que perpetuam o medo e o preconceito.
Sambemos!
Carrego de Exu eu não quero carregar. Mas amuleto, o que é que há?
- Ko si ọba kan, ofi, Ọlọrun.
Sinopse
1 – Igbá Cubango
Na festa de Domurixá
em homenagem a Oxum
Deusa da nação Ijexá
onde a figura principal
era o boneco Babalotim
mensageiro da alegria, da força do axé
um ídolo menino, levado por menino em sua fé
e assim teve origem o Afoxé
Heraldo Faria e João Belém – Afoxé
Igbá Cubango! Guardamos nessas cabaças as memórias antepassadas. Fundamentos. Levamos para a Avenida o peji das nossas vitórias: evocamos o dom de Afoxé, o samba que se fez milagre. Assentamos, aqui, nossa história. Da palha fazemos um trono. O ídolo-menino de outrora é revivido na Passarela: que todo componente da escola a ele dirija um pedido. Valei-nos, Babalotim! Oxum traz os seus axés: pedras do fundo do rio, pentes de tartaruga. Otás. São Lázaro se transforma: Obaluaê, Omolu, Xapanã, na porta da nossa quadra, no Morro do Abacaxi. Saúda e protege os sambistas, que a ele oferecem presentes. Giram laguidibás, giram saias, giram guias. Chifres de búfalos, asas de besouros. Mães-baianas, turbantes e panos da costa, cobrem o chão de pipocas. As mãos nos atabaques, os pés na terra. Os corpos-terreiros fervem e alguém, enfim, anuncia: agarrem as suas figas para mais uma sagração!
2 – De pedir proteção
Laguidibá
não é simples ornamento
é colar de fundamento
você tem que respeitar
(…)
Laguidibá
é adereço muito certo
é coisa de santo velho
do Antigo Daomé
Nei Lopes – Laguidibá
Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. O barroco tropical brasileiro reuniu em um mesmo oratório as relíquias dos santos de lá às penas caboclas de cá. Nos balangandãs de prata, romãs e muiraquitãs. Medalhas. Uma figa, uma rosácea, um coração, um crucifixo. Búzios, firmas, fitas, fios de conta. Dentes de animais encastoados. Pulseiras, colares, cocares. Calungas. Me banhei com guiné, alfazema e dandá. Defumei com quarô, benjoim. Patuás. Ourivesaria sagrada, jóias de mandingueiras. Quase tudo se faz amuleto, pedir proteção é de praxe – “basta encontrar na rua um fetiche qualquer, pedra, pedaço de ferro ou concha do mar”, escreveu João do Rio, nas quebradas. O seguro morreu de velho e é preciso se precaver: fechar o corpo, tomar a sorte, ganhar coragem, fazer os nós. Nos sacrários das sacristias, nos segredos dos Candomblés. Ebós. Arriar comidas nos entroncamentos. Carrancas pra navegar, máscaras nos bailados. Terços e escapulários – e um pouquinho de pó de pemba.
3 – De pagar promessas
No alto do morro chega a procissão.
Um leproso de opa empunha o estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento.
Os homens cantam, cantam sem parar.
(…)
No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.
Carlos Drummond de Andrade – Romaria
Pedido feito, graça recebida – então é preciso pagar. Caminhar, seguir romaria. Carregar uma cruz tão pesada, o drama de Zé-do-Burro. Nas mãos calejadas da lida, cem mil corações em brasa. Ex-votos do Brasil inteiro desenham um mapa de pernas. O catolicismo popular expressa as andanças da nossa gente: Bonfim, Nazaré, Matosinhos, Bom Jesus, Pai Eterno, Canindé, Monte Santo, Juazeiro, e lá se vai a multidão cantando. Que ex-voto levo à Aparecida, se não tenho doença e só lhe peço a cura? – questionou Adélia Prado. São Judas Tadeu – Niterói. A Candelária, a Penha, a Penna. Nos “museus das promessas ou dos milagres”, como o descrito por Jorge Amado, vê-se a sobreposição de dádivas: barro, cera, madeira, papel. São partes do corpo, são pinturas, são retratos e miniaturas (de casas, de bichos, de barcos, de gratidão). Cartas, bilhetes, roupas, diplomas. Vitalino esculpiu ex-votos, Mestre Fida é uma referência. Artistas contemporâneos revisitam o imaginário – mesmo o Bispo do Rosário, que tanta alegria nos deu, a quem novamente rogamos: olhai por nós, nobre peregrino! Cada rosto esculpido foi dor alentada. (…) Deixa a dor nas aras, como ex-voto aos deuses – e segue o teu destino!
4 – Da (falsa) promessa que é dívida
HELOÍSA – Ficaste o Rei da Vela!
ABELARDO I – Com muita honra! O Rei da Vela miserável
dos agonizantes. O Rei da Vela de sebo. E da vela feudal que nos fez
adormecer em criança pensando nas histórias das negras velhas…
Da vela pequeno-burguesa dos oratórios e das escritas em casa… (…)
Num país medieval como o nosso, quem se atreve a passar
os umbrais da eternidade sem uma vela na mão?
Herdo um tostão de cada morto nacional!
Oswald de Andrade – O Rei da Vela
Mas há os falsos profetas e as falsas promessas à venda. Objetos de todo tipo, no shopping-cassino da unção. É água de benzer camisa, é caneta de assinar contrato, é tijolo para erguer a casa, é vassoura de varrer o diabo. Travesseiros para sonhos bons, redes de pescar vitórias. E velas aos borbotões! Não é outro que não a vela o mais famoso objeto votivo: de pedir, pagar, prometer. Abelardo I, o Rei da Vela, lucrou e fez fortuna explorando a miséria alheia. A crítica de Oswald de Andrade, Antropofagia e Tropicália, permanece ferida aberta no peito do Brasil atual. São promessas que viram cifras e moedas que se avolumam: qual é o preço a se pagar por um lugar confortável no céu? E que céu tão nublado é este, que mais exclui do que celebra a diferença? Dívidas que se pagam a preços exorbitantes – inclusive um outro tipo de voto, nem devoto nem ex-voto: o voto depositado nas urnas eleitorais.
Que as velas acendam pedidos de dias mais iluminados. Afinal, já dizia o poeta: há sempre uma promessa de alegria…
Amém, Axé, Evoé, Saravá!
-Glória pro fio de Exu!
Carnavalescos – Gabriel Haddad e Leonardo Bora
Autores e pesquisa do enredo – Gabriel Haddad, Leonardo Bora e Vinícius Natal
Nascido de uma confluência de sonhos, sequências de sincronicidades.
Agradecimentos especiais a Thiago Hoshino e Fred Góes.
Referências bibliográficas
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BARRETO, Cristina; BORGES, Adélia. Pavilhão das Culturas Brasileiras: Puras misturas. São Paulo: Terceiro Nome, 2010.
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http://www.repositorio.ufc.br/…/3378/1/2007_dis_lmosilva.pdf.
VAREJÃO, Adriana. Entre carnes e mares. Rio de Janeiro: Cobogó, 2009.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Deuses Iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 2002.
https://projetoex-votosdobrasil.net/.
Canções mencionadas no texto:
Afoxé, Heraldo Faria e João Belém
Feita na Bahia, Roque Ferreira
Laguidibá, Nei Lopes
Poemas e demais textos literários mencionados no texto:
Alegria, entre cinzas, Carlos Drummond de Andrade
Bahia de Todos-os-Santos, Jorge Amado
Ẹlẹgbara, Alberto Mussa
Ex-Voto, Adélia Prado
Ex-Votos, Aninha Duarte
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (capítulo Macumba), Mário de Andrade
Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade
No mundo dos feitiços, João do Rio
O Pagador de Promessas, Dias Gomes
O Rei da Vela, Oswald de Andrade
Romaria, Carlos Drummond de Andrade
Segue o teu destino, Ricardo Reis/Fernando Pessoa
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